quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Meu punhal a escrever



amália rodrigues | meu amor, meu amor

O amor é de outro reino. Da amizade, do amor, do encontro de duas pessoas que se sentem bem uma ao lado da outra, fazendo amor, falando de amor, trocando amor, conversando de amor, falando de nada, falando de pequenas histórias código de ministros com aventuras de aventuras sem ministros conversa alta e baixa de livros e de quadros de compras e de ninharias conversas trocadas em miúdos ouvindo música sem escutar música que ajuda o amor o amor precisa de ajudas de ir às cavalitas de andas de muita coisa simples amor é um segredo que deve ser alimentado nas horas vagas alimentado nas horas de trabalho nas horas mais isoladas amor é uma ocupação de vinte e quatro horas com dois turnos pela mesma pessoa com desconfianças e descobertas com cegueiras e lumineiras amor de tocar no mais íntimo na beleza de um encanto escondido recôndito que todos no mundo fizeram pais de padres mães de bispos avós de cardeais amor agarrado intrometido de falus com prazer de alegria amor que não se sabe o que vai dar que nunca se sabe o que vai dar amor tão amor.

Ruben A.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

E eu disse que havia de levar-te flores



ben harper | morning yearning

E perguntei-te se também morrias.
E tu disseste: Sim.
E eu disse-te: Que vai ser de mim?
E tu disseste que nesse momento já seria crescido.
E eu disse-te: Não vejo a relação.
E tu disseste que sim, que havia uma relação.
E eu disse: Bom.
E tu disseste que todos nós tínhamos de morrer.
E eu perguntei-te se para sempre.
E tu respondeste: Sim.
E eu disse-te: Então, e o céu como é?
E tu disseste que isso era depois.

Sim.

E eu disse que havia de levar-te flores.
E tu perguntaste-me: Quando?
E eu respondi: Quando morreres.
E tu fizeste: Ah!
E eu disse que havia de levar-te flores, e disse também: Papoilas.
E tu disseste-me que era melhor não pensar nisso.
E eu disse-te: Porquê?
E tu disseste-me: Porque sim.
E eu disse: Bom. E depois perguntei-te se nos íamos encontrar no céu mais tarde.
E tu respondeste-me: Sim.
E eu disse: Ainda bem.

Sim.

E depois perguntei-te quem a tinha inventado.
E tu disseste: Inventado o quê?
E eu disse: Essa história da morte.
E tu disseste: Ninguém.
E eu disse: E o resto?
E tu disseste: Qual resto?
E eu disse: Essa história do céu.
E tu disseste: Ninguém.
E eu disse-te: É boa. E disse-te ainda: Pois. E depois disse-te: Quando morreres, faço da tua barriga um tambor.
E tu disseste-me: Isso não se diz.
E eu disse-te: É pecado?
E tu disseste: Não.

Fernando Arrabal

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Depois do abraço



radiohead | fake plastic trees

Enfim temos
as duas mãos cheias de luz –
as estrofes da noite, as agitadas
águas batem de novo nas orlas
da margem, no sono cru,
sem olhos, dos animais no canavial
depois do abraço – então
voltamo-nos para a encosta
lá fora, contra o céu
branco que desce
frio sobre o
monte, a cascata de brilhos,
e cristaliza, gelo,
como caído de estrelas.

Na tua fronte
quero viver o pequeno
tempo, esquecido,
deixar passar silencioso
o meu sangue pelo teu coração.

Johannes Bobrowski

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Essa palavra incerta quase a rimar contigo



the smiths | i know it's over

deixo acesa, mas muda, a tv que derrama
uma luz submarina sobre a cama desfeita,
o corpo imaginado em que dormi.
Toda a noite esperei que me chamasse
a pancada das mãos numa mesa de galo,
ou do baralho gasto me saísse,
na lotaria universal, essa palavra incerta
quase a rimar contigo; e já
me esgueiro pelas frinchas da janela,
disperso na manhã leve e tranquila
como uma sombra mais incandescente.
Fora, a piscina do mar está lisa e fina
e apetece subir, pelas colunas de ar, ao céu
do deus desengonçado, ameaçá-lo
com a ignorância humana, a indiferença, a morte,
as coisas que não sabe nem pressente:
como um vampiro se não vê ao espelho,
como lobos vulgares são gente humana,
como os devora a imagem nunca vista,
como sempre se enganam a caminho
de um vago coração adormecido.

António Franco Alexandre

domingo, 25 de setembro de 2011

Como se uma utopia se aproximasse de nós



alela diane & alina hardin | crying wolf

Sinto com entusiasmo esta possibilidade de começar outra maneira de viver. O que ajuda à decisão é um mar revolto, que se foi formando através de factos isolados que começam a enredar-se, imagens que nos surpreendem, livros que lemos. As pessoas que frequentamos. Algo de diferente que se valoriza, que nos espanta e que sentimos como se uma utopia se aproximasse de nós. A mudança realiza-se quando o nosso olhar não se separa dela.

Ernesto Sabato

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

The laughing heart



peter murphy | i'll fall with your knife

your life is your life
don’t let it be clubbed into dank submission.
be on the watch.
there are ways out.
there is a light somewhere.
it may not be much light but
it beats the darkness.
be on the watch.
the gods will offer you chances.
know them.
take them.
you can’t beat death but
you can beat death in life, sometimes.
and the more often you learn to do it,
the more light there will be.
your life is your life.
know it while you have it.
you are marvelous
the gods wait to delight
in you.

Charles Bukowski

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Desrazões



king creosote & jon hopkins | bubble

De tentar ver por todos os lados eu fico tonta
e com o coração a milhas não devia falar

Helga Moreira

terça-feira, 6 de setembro de 2011

And the wind did howl and the wind did moan



nick cave & pj harvey | henry lee

Há exercícios para treinar a verdade como, por exemplo, ter medo. Ou então ter fome. Depois restam exercícios para treinar a mentira: todos os grupos são isto, e todos os negócios. Estar apaixonado é a outra forma de exercitar a verdade.

Gonçalo M. Tavares

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

You're always amazed when someone gets hurt



the magnetic fields | my sentimental melody

Algumas pessoas vendem o seu sangue. Tu vendes o teu coração.
Era isso ou a alma.
A parte difícil é tirar a maldita coisa para fora.
Uma espécie de torção. Como abrir uma ostra,
a tua espinha, um pulso,
e depois, upa! Está na tua boca.
Viras-te parcialmente do avesso
como uma anémona do mar a cuspir um seixo.
Há um plop quebrado, o som
de vísceras de peixe a cair num balde.
E ali está, um enorme coágulo vermelho escuro
do passado ainda-vivo, a cintilar inteiro no prato.
Vai passando de mão em mão. É escorregadio. É deixado cair.
Mas também degustado. Muito grosseiro, diz um. Muito salgado.
Muito amargo, diz outro, fazendo uma cara.
Cada um é um gourmet instantâneo,
e tu ficas a ouvir isto tudo
a um canto, como um empregado de mesa recém-contratado,
a tua mão tímida e habilidosa na ferida escondida
no fundo da camisa e peito,
timidamente, sem coração.

Margaret Atwood
(Tradução: Maria Sousa)