segunda-feira, 30 de abril de 2012

I saw your hair between the trees

david tattersall | i saw your hair between the trees

Os troncos das árvores doem-me como se fossem os meus ombros
Doem-me as ondas do mar como gargantas de cristal
Dói-me o luar como um pano branco que se rasga.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 27 de abril de 2012

All your praises they shall ring

antony hegarty | if it be your will

Devias querer vida em vez de palavras. Devias saber que as palavras não choram, não riem. Devias, sobretudo, aprender que estás só. Nenhuma palavra poderá viver ou morrer no teu lugar. Escreveste na mensagem que me enviaste: eu não vou poder ser feliz. Senti que estavas a trocar a vida pela poesia e nem a dor consegui ouvir. A violência do erro tudo calava e do grito que desesperada lançavas, nem dor nem poesia restavam. 

Jorge Roque

terça-feira, 24 de abril de 2012

Entregate a mis brazos


rodrigo leão & lula pena | pásion

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor.

Herberto Helder

Sorrir pelo ângulo da malícia

















nina simone | love me or leave me

Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti ______________
__________ até que a dor alegre recomece.

Maria Gabriela Llansol

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dos livros

the magnetic fields | the book of love

Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

Pedro Mexia

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Breathtaking, for as far as i can see

micah p. hinson | for your eyes

Sempre onde tu estás
Naquilo que faço
Viras-te agarras os braços

Toco-te onde te viras
O teu olhar nos meus olhos

Viro-me para tocar nos teus braços
Agarras o meu tocar em ti

Toco-te para te ter de ti
A única forma do teu olhar
Viro o teu rosto para mim

Sempre onde tu estás
Toco-te para te amar olho para os teus olhos.

Harold Pinter

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto

tom waits | who are you?

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia
Eu esperava por ti, tu não vinhas, tardavas e eu entardecia
Era tarde, tão tarde, que a boca, tardando-lhe o beijo, mordia
Quando à boca da noite surgiste na tarde tal rosa tardia

Quando nós nos olhámos tardámos no beijo que a boca pedia
E na tarde ficámos unidos ardendo na luz que morria
Em nós dois nessa tarde em que tanto tardaste o sol amanhecia
Era tarde de mais para haver outra noite, para haver outro dia

Meu amor, meu amor
Minha estrela da tarde
Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza
Se tu és a alegria ou se és a tristeza
Meu amor, meu amor
Eu não tenho a certeza

Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram

Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram

Eu não sei, meu amor, se o que digo é ternura, se é riso, se é pranto
É por ti que adormeço e acordo e acordado recordo no canto
Essa tarde em que tarde surgiste dum triste e profundo recanto
Essa noite em que cedo nasceste despida de mágoa e de espanto

Meu amor, nunca é tarde nem cedo para quem se quer tanto!

José Carlos Ary dos Santos

terça-feira, 17 de abril de 2012

I need you so much closer





















death cab for cutie | transatlanticism

Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
uniram-se aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.

Pablo Neruda

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Estou mudo porque todas as palavras te escutam
















nick cave & the bad seeds | straight to you

falar-te-ei de como se erguem
em flor as sementes,
de como o luar pode desfazer
a solidão de um nome
e atirar-nos para o lugar das mãos.

ao longe, a púrpura dos dias,
do ar respirado, da vida
que não pára de bater
em cada grão de terra
- nas tuas mãos, o meu
coração de lã e o frio
que não mais te tocará
por ser possível ser-se feliz.

Vasco Gato

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Carrego-me pela porta até ao jardim que se estende lá fora


elliott smith | waltz #2


Existe um rasto de silêncio pelas
ruas desta cidade onde moro. O meu corpo
tece horas já e nada se apaga como antes.

Onde estou, o frio é incessante e
às minhas mãos queimam-se fotografias como
se o passado não existisse mais.

De hoje em diante, irei apagar-me
em cada dia, para que nada reste dentro de mim
ou dentro da garrafa vazia.

Por isso te vejo a desaparecer
rapidamente, como um dente-de-leão ao vento
da minha voz, ao agredir-te sem que te
doa ou marque para sempre.

E para que os dias passem, bebo-me
de dentro das mãos. Como um vinho verde
que me corre no corpo e assim a visão do mundo
é mais carente - o frio que sinto é da
cidade.

Nada mais existe por aqui que me prenda
ou que me faça ficar. Visto a mala para
pensar na partida, carrego-me pela porta até
ao jardim que se estende lá fora, sem luz sem sol
nem calor.

Os meus pés já não caminham porque
não sabem. Porque todas as cartas me ensinaram
que a maneira como se pisa um ladrilho é igual
à de pisar um rosto
mesmo que de tal não se goste.

Por isso perco os sentidos nesta cidade
sem polícia e sem refúgios - como se fosse eu
o último a perder-me nas ruas labirínticas e
planas onde o vento me espalha a memória como
água em papel.

Sérgio Xarepe

O breve estremecer que te percorre














the cure | pictures of you

eu teimo em ser humano por um dia
para que possas ver-me tal qual sou:
um grão, de fina areia, que se move
no dourado rumor da tua pele,
o breve estremecer que te percorre,
a preguiçosa vida dos sentidos;
e depois, teu igual, talvez te vença
ou me deixe vencer, e te pertença
com a vaidade que me vem de ter
o sábio coração de um aranhiço.

António Franco Alexandre

quarta-feira, 11 de abril de 2012

It's all such a blur when time goes so quickly






















the sound | total recall

Da existência ficara-lhe o olhar desvairado, para dentro, de quem segue na alma um sonho e anda na vida por acaso, o olhar daqueles em quem a vida interior é enorme e que ficam surpreendidos quando a dor lhes diz que o mundo existe.

Raul Brandão

Muriel

the veils | the leavers dance

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te

Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te

Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há a gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem

Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho de manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser a solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te

Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora que te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te

Eu aprendi a ver na minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales

Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
e penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente

Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
no fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente ao bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros

Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros

Até que certo dia não sei bem
ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
terei até talvez mesmo morrido

Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora

Tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão da escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda

Dizia que ao chegar se olhares e me não vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

terça-feira, 10 de abril de 2012

Da importância das palavras

nick cave & pj harvey | henry lee

Tínhamos o sol por perto. Lembro-me bem: a rua subia a pique, o rio ficava para trás. A minha respiração compassada com a tua, os nossos dedos enlaçados e eu a dizer: tenho o coração nas mãos. Um pesado fio de cobre que balançava no meu peito e eu a segurá-lo – firme – enquanto caminhávamos apressados pela cidade. E tu a não acreditares e eu depois a rir muito porque tudo soara banal, como uma daquelas frases românticas saídas de um êxito de bilheteira bacoco. Eu, diante de ti, sem saber mas a sentir – o coração a bater descontrolado. Sabes, amor, se eu te dissesse que as tuas mãos fazem nascer em mim flores, rios inteiros, e que o cheiro dos dias não é o mesmo sem ti, é vertigem insaciável, uma sensação tão boa quanto assustadora, de princípio e de fim, agora e sempre, e este medo que me acompanha à noite quando paro para pensar e o teu calor a derrubar muros, fronteiras, monstros à solta e tudo isto com um sorriso, e tudo isto – amor – porque agora insisto em guardar aquele coração numa caixa, nem sei bem porquê, não sei bem como, não sei bem onde. Se ainda ao menos eu conseguisse puxar-te para mim, olhar-te nos olhos, e dizer (porque é verdade) que o teu corpo é a minha casa: assim, devagar. Perdoa-me a vergonha. Contigo aprendi a viver urgentemente e deixei os grandes detalhes – como as arrumações e as desculpas ensaiadas na ponta da língua – para as fadas ou para o pó. Sabes, se um dia quiseres partir, eu hei-de fugir para longe. Não sem antes desenhar declarações de amor desajeitadas nas tuas costas. Isto porque as palavras só me nascem nas mãos, enquanto conto os dias no calendário para te beijar. Tudo isto, amor, enquanto o rádio sussurra a mesma canção e algum Deus, que eu finjo não acreditar, conspira desejos e segredos, aproximando-nos a cada instante, sempre mais. Como no dia em que te vi pela primeira vez, ainda não podias tu sequer sonhar comigo.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Os amantes com casa


















marianne faithfull  | this little bird

Andavam pela casa amando-se no chão e contra as paredes. Respiravam exaustos como se tivessem nascido da terra, de dentro das sementeiras. Beijavam-se magoados, até se magoarem mais. Um no outro eram prisioneiros um do outro, e livres libertavam-se para a vida e para o amor. Vivendo a própria morte voltavam a andar pela casa amando-se no chão e contra as paredes. Então era a música, como se cada corpo atravessasse o outro corpo e recebesse dele nova presença, agora serena e mais pobre mas avidamente rica nessa pobreza. A nudez corria-lhes pelas mãos, onde tudo é branco e firme. Aquele fogo de carne era a carne do amor, era o fogo do amor, o fogo de arder amando-se por toda a casa, contra as paredes, no chão. Se mais não pressentissem bastaria aquela linguagem de falar tocando-se, como dormem as aves. E os olhos gastos por amor de olhar, por olhar o amor. E no chão contras as paredes se amaram e pela casa andavam como se dentro das sementeiras respirassem. Prisioneiros libertados, um no outro eram livres e para a vida e para o amor se beijaram magoando-se mais, até ficarem magoados. E uma presença rica, agora nova e mais serena, avidamente recebeu a música que atravessou de um corpo a outro corpo chegando às mãos onde toda a nudez é branca e firme. Como uma carne de fogo, incarnando o amor, incarnando o fogo, contra o chão das paredes se amaram, pressentindo que andando pela casa, bastaria tocarem-se para ficarem a dormir, como acordam as aves. 

Joaquim Pessoa

domingo, 8 de abril de 2012

Para sempre
















nick cave & the bad seeds | gates of the garden

Leve como pena, a luz apagada, a incrível doçura do teu corpo. Frágil minúsculo na ponta dos dedos da minha mão. Apanhar-te toda, amachucada toda na palma da minha mão. Friso subtil dos meus nervos, ah, o veludo do teu calor. Carne virgem, a seda da tua pele, os teus seios ocultos como flores de estufa. Tanto como te sonhei e imaginei no meu querer de crise e estava agora ali total, tinha medo de te tocar, destruir. Tão melindrosa evanescente. Então devagar. Queria ter-te toda e parecia-me que alguma coisa de ti me fugia e não entrava no domínio da minha posse, da minha absorção. As minhas mãos pelo teu corpo franzino, na face, nos seios, nas pernas de criança. Estavas em silêncio, respiravas alterada no meu ombro, ave trémula. Uma serrilha fina, subtil ácido na fímbria dos meus nervos, não tinhas uma palavra, respiravas fechada em ti. Fechada, secreta, ajustada cerradamente, pequenina dócil - desvendar-te. Tenho dores em todo o corpo, nas articulações. Tremo todo eu no mistério do teu corpo guardado desde a eternidade para mim. Tremo eu todo na impossível inverosímil presença da totalidade cálida de ti. Febre que grita em cada átomo de mim, grito na profundidade das vísceras ao excesso do meu delírio, tu quieta à minha profanação. Corpo suave na mistura intensa da nossa mútua fecundidade plasma ígneo de nós e tu subtil sem a força que aguente a minha abundância poderosa. Leve apenas, ave ferida, submisso fino um queixume, toda a tua pessoa furtiva, todo o fugitivo de ti, toda a tua pessoa arisca e graciosa fechada agora em mim, no meu excesso a transbordar. E aí te perdes longamente, aí te perco, até que o mundo renasceu e tu ao centro e ao pé de mim. Rapidamente então ergueste-te, eu ouvia-te ali ao pé na purificação de ti, renascida, purificada e imediatamente adormeceste. E ergui-me eu também, vim encontrar-te na distância aérea dos anjos e das crianças. Só eu não dormia, pregado na noite como uma estrela. E de mim a ti uma benção que eu não tinha mas sentia num impulso a um sorriso, a uma pacificação que se expandia de mim e ia até aos limites da vida e te inundava de uma imponderável ternura. Assim estive longo tempo, mas eu precisava tanto de te tocar. Recuperar a tua realidade inacreditável, a tua presença no centro do universo. A mão suave na fronte, o lume de um meu dedo na fímbria do teu corpo. A respiração subtil da minha boca na tua face. O halo fugidio da minha presença na tua - e tu rodaste sobre ti, um apagado ciciar da tua boca. Pregado na noite como numa vigília, irradiada de uma luz viva e trémula - dorme. Que é que eu amo em ti? Não é o teu corpo, não é o teu espírito, mas a transfiguração de um pelo outro, a transcendência da tua carne frágil, a abordagem de quem tu és no mais profundo de ti; na posse compacta de toda tu, no espasmo de um punho cerrado - dorme. Não posso dormir, não quero. Como perder esta hora máxima de ser, de tocar toda a realidade secreta, drasticamente separada, segregada da minha ânsia em agonia? Porque tu eras para mim o puro irreal e imaginário, o subtil incorpóreo, a pura iluminação sem consistência, a aparência do não-ser, a terrível beleza intocável, a graça aérea imaterial. E agora estavas ao pé de mim, e eu estendo a mão devagar para condensar em realidade a tua imaterialização. Como dormir e perder-te e acordar depois - tu não estavas aqui e ser tudo fantástico de impossível?

Vergílio Ferreira

sábado, 7 de abril de 2012

Do sagrado

















jeff buckley | hallelujah

Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
- Mais interior do que o sangue no coração que me darás -

Peço um coração
Nuclear

Daniel Faria

sexta-feira, 6 de abril de 2012

A color of the sky






















yann tiersen | la noyée

Windy today and I feel less than brilliant,
driving over the hills from work.
There are the dark parts on the road
when you pass through clumps of wood
and the bright spots where you have a view of the ocean,
but that doesn’t make the road an allegory.

I should call Marie and apologize
for being so boring at dinner last night,
but can I really promise not to be that way again?
And anyway, I’d rather watch the trees, tossing
in what certainly looks like sexual arousal.

Otherwise it’s spring, and everything looks frail;
the sky is baby blue, and the just-unfurling leaves
are full of infant chlorophyll,
the very tint of inexperience.

Last summer’s song is making a comeback on the radio,
and on the highway overpass,
the only metaphysical vandal in America has written
MEMORY LOVES TIME
in big black spraypaint letters,

which makes us wonder if Time loves Memory back.

Last night I dreamed of X again.
She’s like a stain on my subconscious sheets.
Years ago she penetrated me
but though I scrubbed and scrubbed and scrubbed,
I never got her out,
but now I’m glad.

What I thought was an end turned out to be a middle.
What I thought was a brick wall turned out to be a tunnel.
What I thought was an injustice
turned out to be a color of the sky.

Outside the youth center, between the liquor store
and the police station,
a little dogwood tree is losing its mind;

overflowing with blossomfoam,
like a sudsy mug of beer;
like a bride ripping off her clothes,

dropping snow white petals to the ground in clouds,

so Nature’s wastefulness seems quietly obscene.
It’s been doing that all week:
making beauty,
and throwing it away,
and making more.

Tony Hoagland

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Dedos e dedos



nouvelle vague | in a manner of speaking

voa comigo nos ombros da noite
enlaçados como dedos e dedos
na ternura completa das mãos.

inventemos asas até que nos
tenham como irmãos os pássaros
e as crianças nos persigam
pelo areal - o voo que é delas também.

acredita que o nosso olhar tocará um dia
o horizonte com tal força que a nossa palavra
ficará redonda, redonda como os ombros
desta noite em que te convido a descobrires
comigo o amor enorme que a maré nos tem

quando nos cobre os pés e nos obriga a nascer.

Vasco Gato

Dá-me a tua mão



lhasa de sela | el pájaro

Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

José Gomes Ferreira

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Só as casas explicam que exista uma palavra como intimidade



the cinematic orchestra | to build a home

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo

domingo, 1 de abril de 2012

Some things you have to lose along the way



tindersticks | travelling light

Impossível dizer até que ponto
a rapidez de tudo
atinge as paisagens na sua certeza
o significado dos instintos
desde muito cedo
os modos de travessia, os receios
imagens em que não pensamos

pela noite tua voz descreve
isso de nós que não tem defesa
um amor
largado às sombras, irreconhecível
até de perto

dizem que se tratou de
derivas, ingenuidades, ilusões
o teu amor é um nome qualquer
que parte

José Tolentino Mendonça