quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Essa última parcela de ilusão
















bonnie prince billy | cursed sleep

Foi quando tivemos essa primeira conversa sobre nós que disseste: Porque é que as mulheres se desgostam de mim?.
Eu pensei que estavas a brincar, era uma ideia que nunca me tinha passado pela cabeça, poderia alguém desgostar-se de ti, mas tu insististe, e havia na tua voz um leve traço que não era de amargura mas de cansaço, creio que, naquele momento, tu acreditavas sinceramente que era isso que se passava, mas parecia-me estranho que o confessasses, afinal um homem tem meia dúzia de ideias enterradas na cabeça, como é que um homem pode admitir que as mulheres se desgostam dele, tu riste-te divertido, e disseste, se calhar é porque não sou bem um homem, e isso era ainda mais absurdo, eu nunca tinha conhecido um homem como tu, mas também, é verdade, eu não tinha idade para ter conhecido tantos homens como isso, fizeste-mo notar, mas aos poucos fui percebendo o que querias dizer com o desgosto, e não era um acto de modéstia, pelo contrário, dentro de ti havia qualquer coisa que te murmurava a mais humilhante de todas as perguntas, como é que uma mulher se pode desgostar de mim, e era isso que tu não suportavas, isso era muito pior que todas as traições e todas as infidelidades, que todos os divórcios e todas as rupturas, no fundo tu gostarias que mesmo as mulheres a quem tivesses dito acabou-se conservassem por ti um sentimento mais profundo, que de alguma forma fizesses parte da vida delas, mas não exactamente da forma como uma pessoa faz parte da vida passada de outra, isto é, arrumada na memória, antes como uma imagem recorrente (esta palavra é tua, desculpa), uma espécie de saudade que o tempo transforma mas que nunca se consegue anular. 

E eu disse-te que não, que não era possível, não sei bem se porque achava mesmo que não era possível, ou se porque intuí que talvez fosse isso que querias ouvir, mas jurei-te que eu gostava de ti, há semanas, meses, dias e noites que vivia em função de ti, dos teus desejos, da tua alegria, do teu sorriso e também, eu podia dizer-to, dos teus beijos, da forma como os teus dedos me tocavam ao de leve nos ombros e lentamente me percorriam até à cintura, e da forma como o teu corpo se colava ao meu, fazes-me tão feliz, disse-te, eu até talvez nunca tivesse sabido o que era a felicidade, nunca tinha amado ninguém assim, e tu franzias o sobrolho, repetias-me, nunca se diz nunca, e rias-te, cada um de nós ama sempre absolutamente quando ama, e parece que nunca houve nada assim, e eu exasperava-me, porque é que havias de relativizar tudo, de reconduzir todos os absolutos de que a nossa cabeça está cheia até à insuportável indiferenciação do mundo das pessoas crescidas, eu disse pessoas crescidas, e tu riste-te de novo, mas sem condescendência, apenas muito casual, e disseste, repara, é esse o mundo definitivo, aquele em que se entra para nunca mais se sair, o resto, a infância, a adolescência são etapas, estações, disseste estações, lembro-me perfeitamente, e eu segui um raciocínio qualquer, e de repente tinha-me perdido de todo da conversa e ouvi a minha voz perguntar-te, em que estás a pensar, e tu, muito admirado, em nada, meu amor, e ficámos assim. Isso foi da primeira vez que falámos sobre nós.

Foi depois disso que percebi a tua vulnerabilidade. Eu explico: o que me intrigava em ti era a tua capacidade de defenderes uma moral da vulnerabilidade sem nunca mostrares que a tua vida também se regia por ela.

Por exemplo, falavas do ciúme, da paixão, do fanatismo das convicções, do subjectivismo e da solidariedade incondicional com os amigos e a família, e, no entanto nem uma vez eu fora capaz de te apanhar a praticar esses pequenos excessos, desvios a uma conduta socialmente virtuosa, falhas numa compleição mental moldada pelo dever-se do mundo dos da tua geração.

E, de repente, percebi que tinhas ciúmes, e que vivias desesperadamente contigo esse sentimento do qual, em última análise tinhas vergonha, e dia após dia era um mal-estar que crescia entre nós, comecei por pensar que era uma das tuas neuras, mas as tuas neuras, tão intensas, normalmente são passageiras, então assustei-me, pensei o inevitável, que estavas absolutamente farto de mim, que bruscamente tinha deixado de te interessar, até fisicamente, parecia-me, alguma coisa se tinha quebrado entre nós, com o coração apertado comecei a preparar-me para o dia em que ias voltar-te para mim muito sério e dizer, ouve, temos que ter uma conversa, há uma coisa que já ando para te dizer há uns dias, tenho estado a pensar que era capaz de ser melhor afastarmo-nos por uns tempos, preciso pensar, de perceber que rumo quero dar à minha vida, desculpa-me, eu sei que sou muito complicado, mas que queres, as minhas manias acabam por tornar-me insuportável até a mim próprio, mas não quero magoar-te e até gostava que ficássemos amigos, devia ser assim, eu tinha lido exactamente essas frases no livro de um autor português, e eu ia ficar sucumbida, não, isso é que não, eu não podia ficar sucumbida, não isso é que não, eu não podia ficar sucumbida à tua frente, ia levantar-me muito depressa, nem sequer seria capaz de te olhar de frente, ia dizer-te então adeus, e tu, espera, não tens nada para me dizer, e depois, meu querido, tu sabes como são as mulheres quando se põem a imaginar, depois haveria lágrimas e os teus olhos iam comprimir-se numa aflição, ias atrás de mim até à porta, agarravas-me no braço esquerdo, vejo a cena perfeitamente, vi-a durante esses dias tantas vezes e era sempre igual, agarravas-me no braço esquerdo e puxavas-me para ti, muito devagar, e a tua voz seria por uma vez sincera, eu queria ouvi-la como se fosse sincera, e dizias-me, preciso tanto de ti, e como de costume eu ia desfazer-me nos teus braços e tudo seria como dantes, talvez melhor, pelo menos isso eu deixava em aberto, interessava-me mais a fulgurância do meu sonho suspenso no tempo, para sempre inscrito na minha memória de ti, do que o que se poderia seguir a este momento dramático na minha imaginação.

Mas não era isso. Pelo menos dessa vez não era isso, e creio que nunca chegou a ser. Durante o tempo em que estivemos juntos, um Verão inteiro, lembras-te? Evitámos o drama, ou evitaste-o tu pelos dois, e é isso que eu dizia, a vida descrita por ti devia ser um vulcão de excessos, uma aventura no limiar do irracional, era quase uma ficção, e eu deveria ter percebido que essa é a tua maneira de viver, um romance vale mais que mil ensaios, dizias muitas vezes, e tinhas razão, pelo menos tinhas a tua razão, e é por isso que percebo o que querias dizer com a história do bêbado e da vida dele, sim, cada um vive por dentro a sua própria metade da vida convencido que é apenas uma metade, mas na realidade é a sua vida inteira, a sua vida incomunicável, sentida como coisa tão inteiramente sua que nem sequer vale a pena partilhá-la, e isto é mentira, é uma mentira moral, não se trata de não valer a pena, isso é uma desculpa com que se ilude o pavor de não se poder transmitir e partilhar, estamos tão longe uns dos outros, é isso que eu sinto, como estou longe de tudo e de ti, meu amor.

Mas dessa vez, percebi os teus ciúmes. E dei-te pretextos, suponho, mas eu era tão desajeitada nisso como noutras coisas, acho que era tão inocentemente óbvia que tu nem tinhas coragem, uma coragem estética, digamos, de levantar a questão, devias viver dentro de ti um combate feroz, mas isso era uma coisa que tu achavas que só podias resolver contigo, e eu precisava, juro-te que precisava que me dissesses qualquer coisa, que mostrasses, com toda a crueldade de que eras capaz quando te sentias ferido, que era uma ferida o que te estava a doer, eu só queria uma razão, mínima que fosse, para me lançar nos teus braços, e jurar-te a única, a mais absoluta das verdades, que te amava, que não podia conceber amar mais alguém, que o amor, tu tinhas que perceber isso, não é uma coisa que se acrescente a outras coisas que já se têm, que não consente sobreposições nem contiguidades, eu sentia isso assim de uma forma muito simples, mas não tenho a certeza de que essa não seja a melhor forma de sentir as coisas mais importantes da nossa vida. 
Mas não foi possível arrancar-te uma palavra e acho que foi aí que tudo começou.

Foi um sentimento vago, a princípio eu achava que era uma criancice, uma crise passageira, eu gostava tanto de ti, precisava de ouvir a tua voz a todas as horas do dia e isso era gostar, sim, era gostar verdadeiramente, fisicamente, percebes, sentia a tua falta nos lugares onde estava e desejava correr para casa, abraçar-te muito, ficar ali a ler e a conversar contigo, ouvíamos ópera e canções de cabaré e depois amávamo-nos, às vezes íamos jantar fora e tu bebias, ficavas num estado de euforia incontrolável, e desarmavas-te, dizias-me que me amavas e os teus olhos ficavam líquidos de felicidade, eu sei, meu amor, eu sei que era verdade, mas agora é tarde, só depois é que percebi que essa era a tua única forma possível de viveres de acordo com a tua moral desregrada de vida, que esse estímulo exterior, esse excesso, era exactamente à medida da transgressão de sentimentos que defendias, mas nessa altura não, de repente apercebia-me de que só me falavas assim quando bebias e isso mais me confirmava na convicção de que contigo nada seria nunca demasiado sério, e que esse teatro meio ébrio com que me cobrias de ternura era, ainda e sempre, uma forma de ocultares a tua indiferença, não digo indiferença, mas pelo menos a forma tão relativa como gostavas de mim.

Sentia que me amavas por fora de mim, que entre nós só existia uma precariedade feita do simples desejo de estarmos um no outro, e que isso tornava absurdo todos os sonhos que sonhara contigo, tenho pudor em escrevê-los e também agora já não interessa, mas a minha vida imaginada ficara pelo caminho e eu tentava desesperadamente perceber onde é que falhara e, era curioso, ao mesmo tempo tinha a sensação confortável de que o nosso fora um episódio sem falhas, nem tuas nem minhas, e isso revoltava-me, porque era injusto que duas pessoas tão obviamente feitas uma para a outra, desculpa a vulgaridade, se atropelassem assim, na pressa de partirem cada uma para seu lado.

Quando dei por mim, dei comigo a desejar estar contigo e a suportar mal a tua presença.
E isso talvez não fosse uma sensação nova na minha vida, apenas que, pela primeira vez, o desejo de te tocar era tão forte como a vontade de partir.

Demorei muito tempo até perceber verdadeiramente que, de uma forma ou de outra, eu tinha saído da tua vida, e tu compreendeste-o primeiro do que eu, é natural, uma vez mais encontravas-te perante uma situação reconhecível, mas eu nessa altura achava que não, que tu no fundo é que nunca tinhas querido entrar na minha vida, que pela tua cabeça nunca tinham passado projectos de que eu tivesse feito parte, tu sabes como é, meu querido, começamos por responsabilizar os outros e quando tomamos consciência de que o que está em causa somos nós, a nossa metade que é a nossa vida inteira, já deitámos tudo a perder, nem sequer somos capazes de preservar a contiguidade que está tão próxima do amor, talvez fosse isso que querias dizer quando falavas em gerir a vida como uma economia de troca, mas também essa é uma verdade que se aprende muito depois, ainda agora não me sinto preparada para a aceitar, não sei se alguma vez estarei do teu lado, mas já sei, digo isto porque na minha idade vê-se a vida só como futuro e o futuro não pode ser outra coisa que a projecção quase automática do presente.

Apetecia-me ficar por aqui, mas espera, ainda quero dizer-te uma coisa.
Lembras-te de uma noite te ter perguntado se duas pessoas podiam viver juntas em mundos diferentes?
Tu ficaste muito sério, percebi que, por qualquer razão que tinha a ver com a tua história pessoal, era uma pergunta que já te tinhas colocado a ti próprio.

Depois, quase a medo, disseste que teoricamente era uma hipótese admissível, que durante muitos anos tinhas pensado que essa era mesmo a forma mais recomendável para evitar o tédio que nasce do hábito quando a rotina se sobrepõe aos afectos, que talvez essa fosse a única forma de fazer uma relação sobreviver no tempo, mas que era preciso que na base desse entendimento houvesse uma espécie de pacto, aqui o meu domínio reservado, ali o teu, mas o pior, disseste, o pior é que, pouco a pouco, os territórios vão-se definindo até à incomunicabilidade, e os seus lugares relativos crescem até ocuparem o espaço inteiro que antes era o domínio comum dos sonhos e dos projectos, e sem sonho, tu mesmo o disseste, sem sonho não há amor que resista.

Ficaste calado muito tempo, tinhas qualquer coisa dentro de ti e eu vi que não estava lá, e senti um ciúme insuportável da tua vida, de tudo o que cabia dentro da tua vida, as tuas alegrias e o teu sofrimento, a tua mágoa injustificável e o teu sorriso sem contemplação, os romances que querias escrever e até aqueles que não sabes ainda que vais escrever.

E era isso a sensação de dois mundos separados, de dois universos que nunca poderiam sobrepor-se, de duas metades que nunca se juntariam uma à outra, dir-me-ás, mas nunca se juntam, eu sei, mas, por favor, deixa-me essa última parcela de ilusão, eu quero acreditar, ao menos por algum tempo mais, que a vida tem que ser uma e uma só, e isso, se acontecer, acontece para sempre, e fica estampado no vidro baço do nosso desejo de perdição.

Pronto. Tinhas razão, é preciso escrever para que as coisas nos apareçam com a clareza que nos serve, eu sei que tudo se torna nítido não porque os nossos olhos tenham mudado, apenas porque a escrita funciona como uma lente que apura os contornos e permite compreender os finíssimos laços que os afectos entretecem entre as pessoas.

Agora, vou deixar-te esta carta no escritório, em cima da secretária, e depois atravesso o corredor às escuras, rodo o manípulo da porta muito lentamente e vou sair sem fazer barulho. Para não te acordar.

António Mega Ferreira

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Con tu mirada de fiera ofendida


















lhasa de sela | la celestina

há mulheres que lamentam a sorte quando os dias despontam no choro,
morrem do avesso com a tristeza a escorrer pelo corpo.
deve ser assim que a palavra medo lhes assoma à flor-da-pele:
a ternura é um trapo enxovalhado, esquecido à margem do poema.
as mulheres feitas de vento e cegueira inventam promessas
de júbilo, carregam o céu inteiro por dentro dos olhos e é sempre
longe do coração que a vida se torna habitável.
há mulheres exaustas de fugir ao abismo, à procura
de um consolo que lhes soe a amor sobre o ventre.
há mulheres que fogem do acaso porque a voz se perdeu no vazio,
mas desse sumiço só os olhos conseguem falar.

O peito aberto a que chamaste amor



tindersticks & lhasa de sela | sometimes it hurts

Os versos
que te digam
a pobreza que somos,
o bolor
nas paredes
deste quarto deserto,
o orvalho da amargura
na flor
de cada sonho
e o leito desmanchado
o peito aberto
a que chamaste
amor.

Carlos de Oliveira

domingo, 27 de janeiro de 2013

E tu não sabes



micah p. hinson | stand in my way

Já não te amo como no primeiro dia. Já não te amo.

No entanto continuam em volta dos teus olhos, sempre, estas imensidades que rodeiam o olhar e esta existência que te anima no sono. 
Continua também esta exaltação que me vem por não saber o que fazer disto, deste conhecimento que tenho dos teus olhos, das imensidades que os teus olhos exploram, por não saber o que escrever sobre isso, o que dizer, e o que mostrar da sua insignificância original. Disso, sei apenas o seguinte: que já não posso fazer nada a não ser suportar esta exaltação a propósito de alguém que estava ali, de alguém que não sabia que vivia e de quem eu não sabia que vivia, de alguém que não sabia viver dizia-te eu, e de mim que o sabia e que não sabia que fazer disso, desse conhecimento da vida que ele vivia, e que também não sabia que fazer de mim.

Dizem que o tempo do pleno verão já se anuncia, é possível. Não sei. Que as rosas já ali estão, no fundo do parque. Que às vezes não são vistas por ninguém durante o tempo da sua vida e que ficam assim ali no seu perfume esquartejadas durante alguns dias e que depois se deixam cair. Nunca vistas por esta mulher solitária que esquece. Nunca vistas por mim, morrem.

Estou num amor entre viver e morrer. É através desta ausência do teu sentimento que reencontro a tua qualidade, essa, precisamente, de me agradares. Penso que apenas me interessa que a vida não te deixe, outra coisa não, o desenvolvimento da tua vida deixa-me indiferente, não pode ensinar-me nada sobre ti, só pode tornar-me a morte mais próxima, mais admissível, sim, desejável. É assim que permaneces face a mim, na doçura, numa provocação constante, inocente, impenetrável.

E tu não sabes.

Marguerite Duras

sábado, 26 de janeiro de 2013

Ver o teu rosto é ter toda a certeza de que existo






















the velvet underground | venus in furs

Oiço dentro de casa que lá fora chove
dizes somente a solitária lágrima
que te humedece os olhos caminhamos
e há em nossos ombros numerosas folhas
Nasço subitamente há mundos no teu rosto
antes de ti ninguém na verdade houve
chove posso dizer pela primeira vez que chove
Esperar por ti não é esperar por ti
esperar por ti é ter talvez esperança
ou é esperar com minudenciosa paciência
e desenhar teu rosto em cada rosto que vejo surgir
na minha alvoroçada vizinhança dos teus passos
Ver-te é como ter à minha frente todo o tempo
é tudo serem para mim estradas largas
estradas onde passa o sol poente
é o tempo parar e eu próprio duvidar mas sem pensar
se o tempo existe existiu alguma vez
e nem mesmo meço a devastação do meu passado
Quando te vejo e embora exista o vento
nenhuma folha nas múltiplas árvores se move
ver-te é logo todas as coisas começarem é
tudo ser desde sempre anterior a tudo
Ver-te é sem tu me veres eu sentir-me visto
sentir no meu andar alguma segurança mínima
caminhar pelo ar a meio metro da terra
e tudo flutuar e ser ainda mais aéreo de que o ar
ver-te é nem mesmo pensar que deixarei de ver-te
ver-te é sentir pousar mais que um olhar
uma mão muito calma sobre a minha vida
ver o teu rosto é ter toda a certeza de que existo
que sempre existirei que não há mais ninguém
ver o teu rosto é mesmo mais do que nascer
empreender viagens começadas nesse rosto
donde podem sair inúmeros navios
ver o teu rosto é como tudo começar
corrida a minudenciosa prega do silêncio
silêncio alto como um cerro inesperado como um curro
aéreo como um cirro denso como um cerro
prosaico às vezes como a mecânica de um carro
Vejo-te e povoas só de folhas que depois desfolhas
os rasos descampados que te cercam por todos os lados
Caminho ao teu encontro
a juventude é como uma oportunidade
começa a ser outono a tarde é território para a luz
tem certas listas como um fato cinzento
toco-te apenas para ver se estás aí
um país se arredonda à tua volta
sinto todas as coisas no lugar
Quando te vais embora fico de repente ao abandono
sem ao menos a protecção de uns olhos de animal
da copa arredondada de uma árvore
Vais-te embora e deixa de haver árvores no mundo
e não tenho palavras e não tenho voz
não conheço ninguém nenhum ouvido
que se possa ajustar à forma do meu grito
E desço da liteira como quem desce da vida
como que me separo de mim mesmo
sinto-me inexplicável e na rua
para sempre irremediavelmente na rua

Ruy Belo

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Foste tu quem me fez poeta



















john grant | queen of denmark

Podes dizer ao mundo inteiro que estas letras são tuas. Assim como os
desenhos que fiz, os espaços que deixei. Podes dizer a toda a gente que um
dia te amei e que foste tu quem me fez poeta. Podes nadar em orgulho ao saber que todos os copos que bebi foram por ti. Que os cigarros que fumei
ansiosa e apressadamente foram pela saudade do teu corpo.

Quando falarem de raios e relâmpagos, de trovões e de tufões, vais poder
dizer que fui eu quem fez a China, quem ergueu muralhas e deitou as lágrimas
de sangue. Quando te perguntarem se um dia me conheceste, diz que sim.
Responde um afirmativo de poder e de vontade. Podes deixar o medo do conhe-
cimento alheio, agora que te sou realmente alheia. Quando um dia o mundo se
desfizer verdadeiramente em estações trocadas - o Verão pelo Outono ou o Inverno pela Primavera - aí podes descansar. Podes contar à galáxia e aos seus
sobreviventes que, meu eterno desconhecido, um dia me fizeste rainha.

José Eduardo Agualusa

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Porque eu amei o teu corpo de tanta maneira

bon iver | i can't make you love me


Meu amor - que amor? Não és tu. És, és. Não és. Na realidade não sei. Na realidade há o que existe, o que se diz um facto, o que se avalia ao quilo ou ao quilómetro. E há o que nos existe, aquilo que está por dentro ou nós por dentro disso - vou amar o teu corpo como nunca te amei. Um corpo é tão misterioso e o nosso mistério com ele. Tenho muita coisa a dizer-te, isso que espere. Porque eu amei o teu corpo de tanta maneira, não sei se contigo também aconteceu assim. Ama-se um corpo como instrumento de amar, como forma de onanismo de que o trabalho é dele. Ou como êxtase de um terror paralítico. Ou como orientação ao impossível que não está lá. Com raiva desespero de quem já não pode mais e não sabe o quê. Como avidez insuportável não de o ter tido na mão, porque o podemos ter nela, sofregamente, boca seios o volume quente harmonioso da anca e tudo esmagar-se até à fúria, ter o que aí se procura e que é o que lá está, mas não o que está atrás disso e é justamente o que se procura e se não sabe o que é nem jamais poderemos atingir.

Vergílio Ferreira

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A noite da nossa solidão é imensa


dark dark dark | daydreaming

Dir-te-ei quem sou,
houve um tempo,
tive um sonho,
lembro-me do teu rosto,
a tua voz já existia.

E ele atravessa a rua,
passando pelo tempo,
de pedra em pedra,
com um cigarro na mão
para pedir lume
ao cigarro alheio,
que brilha no outro lado,
ao cimo dos três degraus.

Vai ser assim:
dá-me lume, por favor?,
e o cigarro encostar-se-á ao seu,
o lume passará de um para outro,
de uma pessoa para outra pessoa,
e então,
no meio da eternidade deserta,
será sim o dia de hoje.

Mas a noite é imensa,
quer dizer:
a noite do lugar e do tempo,
a noite da nossa solidão
— é imensa,
e apenas um pequeno órgão vivo
palpita algures,
vibra rapidamente,
e amortece-se,
e desaparece.

Então,
uma vez mais
a noite se levanta de nós,
e o que estremece é a carne,
a nossa,
cega e desamparada
— mas fremente
na sua cegueira e desamparo.

Sabes que estás só?
— pergunta a carne à carne —,
sabes que a noite se ergueu de ti,
como se fosses o seu próprio
e único talento,
e que esse talento te cerca
como uma atmosfera,
o morto clima que transportas em ti,
de um lado para outro,
ao longo das pedras,
ao longo de todos os lugares
do homem?

Ela sabe,
ou pelo menos
sabe que sabe.

E
é demasiado.

Por isso,
olha
e espera.

E vê de novo
a brasa que estremece
na escuridão
como uma planta
que crescesse
e florescesse na terra negra,
ou um animal
cujo calor abrisse uma brecha
no tempo frio.

A carne embriaga-se
com imprecisas metáforas de salvação
— que salvação?!
com um movimento subterrâneo de analogias,
e ele diz:

vou pedir-lhe lume.

Vai através do bairro múltiplo,
o tempo que o escuro abafou,
e então
é como se fosse fora do tempo,
ou dentro de todo o tempo,
à procura do lume
para o seu cigarro.

Herberto Helder

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

When you walked into the room tonight lighting took hold of my heart for a while


electrelane | in berlin

Mudamos esta noite

E como tu
eu penso no fogão a lenha
e nos colchões

onde levar as plantas

e como disfarçar os móveis velhos

Mudamos esta noite
e não sabíamos que os mortos ainda aqui viviam

e que os filhos dormem sempre
nos quartos onde nascem

Vai descendo tu

Eu só quero ouvir os meus passos
nas salas vazias

António Reis

sábado, 12 de janeiro de 2013

Your pain is no credential here, it's just the shadow of my wound


leonard cohen | avalanche

Ela tinha a ânsia de explicar tudo, mesmo o que para os outros não era explicável. Porque lhe apetecia fazer amor com ele todos os dias?, por exemplo. Que pergunta tonta, diriam. Talvez por isso começou a guardar os rascunhos inúteis daquilo que já escrevera numa caixa de sapatos velha, que forrou com papel colorido e flores secas. Ontem, quando foi ao supermercado, uma senhora idosa olhou-a fixamente e abordou-a em segundos. Disse-lhe que estava apaixonada, muito apaixonada. E ela, sem saber o que dizer ou pensar corou e sorriu, sussurrou um sim abafado e saiu a correr. Passou o resto da tarde a reflectir naquele episódio. E depois surgiram as dúvidas. Mas a verdade é que quando tinha frio procurava invariavelmente o abraço dele, como se nenhum outro corpo conseguisse atenuar esse não sei bem o quê, que se parece com desespero ou outra qualquer forma de o ter também. Agora dava por si a acreditar que nunca fora tão feliz e a inventar para eles todos os destinos possíveis. Um dia rir-se-ia disso, tinha a certeza. Ou então choraria.

Ele, por sua vez, tinha o corpo alto lembrando uma árvore de raízes profundas. Tinha as costas largas e os ombros fortes, lembrando montanhas esquecidas de tempos distantes. Tinha as mãos grandes mas sabia tocar ao de leve, incendiando, provocando arrepios e harmonia, às vezes as duas. Tinha o rosto iluminado, como os olhos, por vezes cheios de preocupação e beleza, e oscilava entre os dois, perdido e encontrado naquele amor. Muitas vezes riam, a boca dele era um altar, como o seu sexo, ou uma frase dita secretamente ao ouvido. E dormir nunca fora tão bom – como acordar de manhã e começar logo a sorrir só porque os pássaros que nunca se ouviam cantavam agora no beiral da varanda. Eles tinham tudo e não tinham nada. Ela julga assim que voltou a acreditar em Deus. Foi também por isso que o desamparo tomou conta dela sem avisar.

Faz de conta que não sei as coisas que não queres que saiba






















david bowie | port of amsterdam (jacques brel cover)

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava
o que ia ficando nas pausas entre cada
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas,
faz de conta que não sei as coisas que não queres
que saiba, acabei por te pensar com crianças
à volta. Agora há prédios onde havia
laranjeiras e romãs no chão e as palavras
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua
que foi comum, o quarto estreito. Um livro
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

Helder Moura Pereira

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Is there sunlight on your bed?


the national | lucky you

I will remember your small room, the feel of you, the light in the window, your records, your books, our morning coffee, our noons, our nights, our bodies spilled together, sleeping, the tiny flowing currents, immediate and forever. Your leg, my leg, your arm, my arm, your smile and the warmth of you who made me laugh again.

Charles Bukowski

(*)

domingo, 6 de janeiro de 2013

Hello my love, it's getting cold on this island













koop | island blues

Vem embora comigo, disse ele, vamos viver numa ilha deserta. Eu disse, eu sou uma ilha deserta. Não era o que ele tinha em mente.

Margaret Atwood

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Ouvindo o monótono correr de uma canção

madrugada | a deadend mind

Desde as áridas paredes alugadas,
entre móveis alheios e pesadas cortinas
que a bruma e a chuva pretendem ocultar.
Desde o hostil refúgio de uma garrafa de genebra,
volto, preciso de voltar, àquela tarde.
Àquele pequeno bar, um nada iluminado,
à segura posse de umas mãos, de uns lábios
que jamais voltarão a ser meus.
Foi um dia, tempos depois de nos termos separado para sempre,
ou pelo menos de o termos prometido, entre insultos e gritos,
na pesada cólera do álcool.
Outra vez juntos, sentados frente a frente,
ouvindo o monótono correr de uma canção,
por entre os rostos e o fumo parado sobre as mesas,
com atitude distante repetíamos os gestos do costume,
a comédia banal da defesa ou do cansaço.
E logo um sorriso, o leve roçar de outra pele,
talvez o doloroso tremor das recordações, enredou os nossos olhos
e por um instante, o bafo cálido da ternura
que não encontra palavras chegou-se aos nossos corpos,
amparando o seu humilhado mendigar sem descanso.
Depois tudo acabou definitivamente,
a vida foi mais poderosa do que nós,
mas agora nada importa senão aquela tarde,
aquele momento de união irrepetível,
a tepidez de uma pele, de uns lábios, cuja mera recordação
protege esta noite o meu coração, dá-me força
para continuar o erro de viver até amanhã.

Juan Luis Panero