terça-feira, 24 de novembro de 2015

Não sei com que outras mãos afagas a sombra do desejo
















tindersticks | let's pretend

Com a idade aprendemos
que o amor existe
na confluência de dois verbos:
o verbo recordar e o verbo ensandecer.
A memória mais antiga que guardo do teu rosto
ainda vem prenhe de uma juventude
que eu próprio ajudei a dispersar
no vento
- enquanto lentamente enlouquecia
entre quadros antigos, livros por ler
e a sombra de gatos que percorriam de noite
os telhados do meu desassossego.
A matura idade aproximou-se dos portões
da loucura, desse limiar que reside
entre o desencanto e a mais pura solidão
- e foi aí que inscrevi o teu nome
como se nele coubesse inteira
a eternidade.
Não sei com quantas letras se escreve
a raiz do teu corpo.
Não sei com que outras mãos afagas
a sombra do desejo.
Não sei onde me escondo se perguntas
pelos ecos do passado.
Sei apenas que perdurará para além da morte
o ser inteiro em ti
imperfeito
ausente
mutilado
mas enlouquecendo devagar nas tuas veias.

Manuel Alberto Valente

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Fate is gonna find you in your glass of champagne.


















jeff buckley | grace

You can't kill the past by denying the past. You can kill it only by making it obsolete. And even in that, you have to find honor in the past. You can't hack off pieces of yourself, and expect them to grow again.

Jeff Buckley

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Os dias do abandono

carmen consoli | i giorni dell'abbandono

Existir é isto, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que fremem sob a pele, e não há outra verdade que se possa contar.

Elena Ferrante

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Bring peace to my black and empty heart
























pj harvey | the dancer

apenas preciso de alguém que me sorria e reponha o mesmo disco sempre a tocar e escute comigo o vento nas janelas e sinta a tristeza que têm os gladíolos murchando em cima da mesa

Al Berto

domingo, 8 de novembro de 2015

A alma que caía

















portishead | glory box

Havia dias em que a alma lhe caía, ficava com a alma baixa, entre os pés, quase a rasar o chão. A alma descaída sob suspeita, dizia.

Nesses dias, um mau olhar, uma falta de atenção ou uma frase qualquer, um adjectivo a mais, algo inesperado, em suma, podia estropiá-lo completamente e dar cabo dele e da sua alma, no meio da rua.

Isto vinha a acontecer desde que lhe contaram uma história, a sua própria história,  aquela que ele recordava ter vivido de outra maneira, quase feliz.

Mas agora já sabe, já lhe contaram como essa história de amor se estropiou antes do fim, ao longo dos últimos meses. Quando ambos se separaram e ele rastejou até à praia dos mutilados, ignorava completamente o que mais tarde lhe contariam com todos os detalhes: que já havia indícios de manchas entre os dedos daquele amor, muito antes de acabar mal.

Por isso agora, diz que há dias em que a alma lhe cai ao chão e lhe fica entre os pés, embaraçada nos atacadores dos sapatos.

Alberto Tugues

(daqui.)

sábado, 7 de novembro de 2015

How many secrets can you keep? (Do i wanna know?)
















arctic monkeys | do i wanna know?

Da paixão cansei-me (pode acolher tanta morte um corpo, esse mesmo que brilha à luz do desejo, esse mesmo que guarda a promessa da alegria). A verdade gastou-se (isto é o mais fácil de compreender: a verdade gasta-se, quando chegamos ao lugar de a encontrar, sabemos por fim que não existe). Sobrou o que sou e o que não sou também, pelo meio a linha de uma estreita solidão, e é isto que te dou (isto o que te posso dar). Só aqui, só agora, este sorriso de estar vivo, e por vezes o cansaço (que embora não pareça faz parte do sorriso).

E agora já me entendes?

E agora ainda me queres?

Jorge Roque

terça-feira, 3 de novembro de 2015

You turn from me and said the trapeze act was wonderful but never meant to last

















iron & wine | the trapeze swinger

Jurei não escrever nunca mais. Coisa tão impossível, como respirar. E o coração foi mirrando, fez-se pedra. Depois julguei que morria de esquecimento por não saber o que fazer com as mãos e o peso no peito. Fomos íntimas durante noites intermináveis, a desesperança e eu. Ninguém soube, mesmo assim. Ora, como um presságio qualquer a música voltou até mim. E eu fugi até onde pude, escondi-me em rotinas e obrigações, recusei a sua presença, fingi até que este refrão não estava já entranhado em mim, por dentro da pele. Jurei nunca mais ir a concerto nenhum. Como é possível esperar tantos anos que uma bênção aconteça e ela nos caia aos pés no momento mais triste das nossas vidas? Não é um milagre, disse, é uma provocação. Mesmo assim, de coração apertado, de mãos frias e pernas a tremer, respondi à letra, sentei-me quieta e calada. Senti-me gasta e cansada no meio de pessoas felizes. Mas fui, em noite de temporal, também ele interior.

O que aconteceu ontem não há-de caber em palavras. Eu estava lá sozinha, a música foi toda para mim, toda até ao fim. A magia também. De repente voltou a vontade de me desfazer em palavras, de me dissolver em chuva, de rir até chorar. Chorar até deixar de doer, até me esquecer de mim, de ti, e de todos. O tempo todo não chegou, é certo. Faz de conta que ninguém me viu chorar, que o nervoso miudinho não me fez apertar as mãos uma contra a outra até ficarem dormentes, faz de conta que não ri por dentro ao pensar na minha figura absolutamente descompensada. Faz de conta que esta música ecoou do palco só para mim, que a cantei do princípio ao fim, para dentro. Dentro, fundo, muito dentro e muito fundo. A trapezista fui eu, e o espectáculo foi bonito, pois foi. Duas guitarras: uma alegre e outra triste. E eu que sou sempre do lado dos tristes, caramba.

Corações ao alto, o meu incluído. (Obrigada por isso, Sam.)

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

De quem é esta briga?


















tom waits | november

Afirmas que brigamos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
E vais à cave içar o teu malão.
Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembranças? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens
Não te devolvo – é minha – a tua pele.
Achei ali um sonho muito velho.
Não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
Que eu costumo vestir quando está frio?
E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?
A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?
Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?
De quem é esta briga? Não me lembro.

Rosa Lobato de Faria

domingo, 1 de novembro de 2015

Depois























nick cave | far from me

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e respostas.

Que coração, no entanto pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.

Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração a saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolhem também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Manuel António Pina