sábado, 29 de julho de 2017

Esta chuva











morphine | you look like rain

Associo a chuva aos mortos. Vem muito lenta,
com os nardos e os tubérculos, com o frio dos lírios
e os grumos pastosos da terra lavrada,
com as nervuras das folhas, as sombras,
com o voo da codorniz e o grito do mocho.
Pela terra dentro, pelo tempo dentro, no coração
do barro, quem sabe deles? Esperam porque é esse
o ciclo da fecundidade. O machado, enterrado,
brilha com a mais viva prata, com um fogo mineral.
Essa é a lei. A chuva lava os sulcos
de rodas na terra, de tantos carros que passaram,
e passadas de humanos e cavalos. Um bafo cinza e líquido,
uma claridade afogada, como aço escuro e opaco,
sobre a terra empapada. Não ouves estas vozes,
os risos das raparigas num meio-dia de Agosto?
Não vês esta blusa vermelha? Como a raiz,
a mão ainda escava na terra húmida, dedos
como garfos, secos, de árida pele
como papel de embrulho. Não, a chuva não chega
a este reino. Cai muito lentamente, conhece
com profunda piedade o tronco da oliveira
e brune a angulosa aspereza da pedra,
e, na laguna, desbrava as águas pantanosas,
coléricas de fumo, e humedece o covil
da raposa, a lura do coelho e o ninho do rouxinol.
Mas não chega, sob a lama empapada,
sob o terrunho de humildade porosa,
de paciência e de luz, ao mais escuro reino,
ao país de rancor e secura dos mortos,
que ainda alongam mãos hostis, ferruginosas,
dentes carcomidos e sexos erectos e convulsos,
mumificados, e com avidez de unhas e de pó
rasgam a pele. Querem possuir-nos
ou apenas pedem para voltar a ser? Pedem
crispação, tremura e sofrimento?
Pedem acaso a incerteza
diária, sentirem que o desejo os sacode,
a pancada do pânico, a fúria
do domínio, o receio da derrota?
Acaso se atrevem a querer sobreviver?
Como vive a raiz, como vive o tubérculo, como vive
a erva, nunca poderão viver os homens
conciliados com um destino? Não aceitarão o céu
do tempo fecundo e o do regresso à terra?
Por tanta dor que já passou,
pelo instantâneo ardor de tantos corpos,
por tudo o que esta luz de chuva nos recorda
e este sabor da terra recém-molhada,
pela vibração do ar quando a chuva
parou há instantes e um pássaro ergue o voo
num silêncio claro, e por esta cor
do pássaro, indeciso no azul, que gorgeia
quando o céu é mais nítido, pelo sofrer
que recordamos e pelos amores de antes,
e pela humilhada inocência,
e pelos desejos nunca confessados,
por tudo isso: nunca teremos uma palavra?
A chuva entra nos palheiros das velhas casas de lavoura,
a madeira apodrece, abre sulcos de água na terra arável
e nutre os narcisos. É cor de cinza
e, nos vidros das janelas tem a cor das memórias.
Há apenas um tempo. O tempo do homem
e o tempo do animal e da planta
e o tempo da pedra são um só. Este falcão
que agora, fulminante, cai do alto do céu,
sabe onde vai, como a pedra que no fundo da cisterna
vê o seu destino num relâmpago de águas.
Subitamente o vêem, e os anula,
e os possui, e chegam ao resplendor: atingem
a fulguração do ser. Chegam assim
a ser o que são. Fiéis, silenciosos,
como o chaparral queimado pelo sol, dizem que sim,
sabem que é sim, que esta imagem
— o brilho de uma água morta, ou, ao cair da tarde,
um lugar de sombras no coração do outeiro —
é o que são, chama-os, para morrer ali,
e esta morte será um ter vivido,
não uma interrupção, nem sequer uma espera.
Dizem que sim, sentindo que não é para lamentar
nada, que nada têm a esperar, que nada se mutila
porque já tudo existia antes: Viviam
sempre o tempo do lugar de sombras
e o tempo da água morta no fundo do poço.
Quando passamos, de noite, junto ao rumor
que o vento ergue na folhagem dos choupos,
ou, na iluminada glória do meio-dia solar,
recolhemos, num cacho de uvas, a claridade,
ou semicerramos os postigos — o sol
é um martelo nas ruas desertas — e um corpo
nos fornece um alento cálido de limões,
ou, quando, pela mata, vemos uma pedra vermelha
ou ouvimos um estalar de ramos e de águas
sabemos que tudo será esse único instante?
Acaso esperamos algo mais? Sem memória,
desapossados, o tempo já não nos ofusca
com um espelho sob o sol,
já não nos fere os olhos com luzes de feldspato.
Eu sou o meu ontem e sinto a eminência
do futuro que pulsa em cada gladíolo.
Não nos espia atrás do instante: é o instante.
Não tem o escuro rosto do nosso receio
nem deverá ser-lhe pedida piedade. Não sentíamos,
desde sempre, que o trazíamos connosco? Desejo,
tu, negro escravo com máscara de príncipe,
e tu, princesa branca e cega, paixão
que ris vestida com a claridade dos lírios,
não sentis que o instante é o vosso tempo?
Nada ganhamos, nada perdemos. Os mortos
vivem o tempo eterno e nocturno da névoa,
o instante que é todos os tempos. O tempo
do desejo e da paixão, o tempo de recordar
e o tempo de sonhar. Os vapores da névoa
e uma fumarada como a da lenha verde
informam onde estão os nossos sonhos: longe,
como os relâmpagos numa noite de estio.

Pere Gimferrer

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Até ao derradeiro suspiro de credo na boca











angel olsen | tiniest seed

Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.

Miguel Torga

sexta-feira, 21 de julho de 2017

E embarcar sem mapa até ao fim do escuro










the waterboys | this is the sea

Fechar os olhos e por dentro ecoar em passado.
Pensar «podia ter outra cor de pele, outra pelagem»
E o tempo virar-se do avesso, e entrar-se ali,
em vórtice, pelo tempo dentro.
Escolher.

Trazer cota de malha e de salitre,
ter chorado quando o porto ao longe se afastara,
milhares de milhas antes,
meses em sobressalto para trás.

As febres e tremuras durante a travessia,
a água amarga, as noites
carregadas de estrelas,
junto ao balanço do navio, um astrolábio.

Numa manhã de sol, do porto de vigia,
ver muito ao fundo, em doce oval,
a linha, quase tão longínqua como constelação.
Gritar «terra», gritar aos companheiros
ao fundo do navio, do fundo dos pulmões gritar,
e o bote depois, os remos largos,
a cama de areia e o arvoredo.

Ou trazer na cabeça penas coloridas,
conhecer só a fundo a areia branca
e o mar sem fundo, peixes pescados ao sabor dos dias,
uma língua a servir de subir a palmeiras,
a servir de caçar e contar histórias.

Moldar um arpão, começar por um osso
ou pedra e madeira,
entrelaçar o corpo da madeira, e o afiado da extremidade.
Contemplar devagar o resultado do trabalho
e da espera.
Ou a beleza. Escolher.

Trazer o fogo na mão, escondido pela pólvora,
fazer o fogo na orla da floresta.
Os risos das crianças, tocar a areia branca, tocar
a outra pele. Cruel,
o medo, vacilar entre a fome e o medo.
Ou não escolher.

As penas coloridas sobre um elmo,
a cota de malha lançada pelo ar como uma seta,
os sons dos pássaros sobre a cabeça,
imitar os seus sons,
num lago de água doce limpar corpo e
pecados de imaginação,
sentir a noite dentro da noite,
a pele junto da pele,
imaginar um sítio sem idade.

Trocar o fogo escondido pelo fogo alerta,
o arpão pelo braço que se estende,
gritar «eis-me, vida»,
sem ouro ou pratas.
Com a prata moldar um anel
e uma bola de fogo a fingir,
e do fogo desperto fazer uma ponte a estender-se
à palmeira mais alta.

Esquecer-se do estandarte no navio,
depois partir da areia branca, nadar até ao navio,
as penas coloridas junto a si,
trazer de novo o estandarte e desmembrá-lo.
Fazer uma vela, enfeitá-la de penas,
derretidos que foram, entretanto,
sob a fogueira alta e várias noites,
elmo e cota de malha.

Serão eles a dar firmeza ao suporte da vela,
um barco novo habitado de peixes
brilhantes como estrelas.

Não eleger nem mar, nem horizonte.
E embarcar sem mapa até ao fim
do escuro.

Ana Luísa Amaral

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Pode um amor tão incerto fazer florir o deserto?







márcia & criolo | linha de ferro

Nunca houve deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console;
nunca houve milagres ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem palavras mágicas, nem bálsamo eficaz
contra a dor que não enfraquece nunca;
e nem luz do outro lado das sombras,
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo da guarda perplexo que suporta
a mesma vida de cão que todos nós.

Amalia Bautista

terça-feira, 4 de julho de 2017

Tréguas







pj harvey | send his love to me

este poema é para ti.
é uma oferta de tréguas
dizendo que
nada no teu coração negro
me poderá assustar.
Olhei tempo demais
para o meu próprio coração.
Obrigada pela dádiva
das tuas incertezas.

Eunice de Souza