terça-feira, 21 de novembro de 2017

Now i've heard there was a secret chord...








jeff buckley | hallelujah

Porque é que deixaste de escrever?, largaste assim a pergunta a meio de um copo de vinho tinto partilhado a dois, enquanto me olhavas com esses olhos constantes de espanto, sempre capazes de me desarmar. Não te respondi, soltar uma gargalhada foi muito mais fácil. Não sei, podia contar-te a verdade que eu sei que tu adivinhas: tudo o que escrevo eu sinto. Se escrevo os teus olhos é como se estivesses aqui agora a ver-me inteira. Às vezes penso que os teus olhos não existem porque vêem sempre mais além, sabes, aqueles pequenos nadas, detalhes que mais ninguém dá conta, só tu. Não consigo deixar de sorrir quando te encontro com esses óculos redondinhos, tão mas tão velhos, a ler o jornal com a maior das atenções e o bloco de notas sempre ao lado, onde guardas viagens passadas, sonhos futuros e poesias e segredos. Não precisas de falar, os teus olhos dizem-me tudo, a maior parte do tempo. Sempre procurei alguém que falasse mais do que eu, porque o meu silêncio me aflige, tenho pavor de ficar sem assunto, que me achem sem interesse. Tretas, dizes tu, talvez seja tudo mais simples na tua cabeça. Um dia quis muito escrever sobre os teus olhos, como eles me salvaram daquela vez em que tive coragem de olhá-los mais fundo, como eles me salvam todos os dias um bocadinho, como esse azul transparente é tão bonito e tão raro. Como me fazes falta, tu e a tua alma antiga tão perto da minha. Mas escrever sobre isso seria admiti-lo a toda a gente. Escrever sou eu a ligar-me a ti, a nós, ao mundo. E os teus olhos são a minha perdição. Enquanto não escrevo: isto sou eu a fugir de ti. Faz-me ganhar tempo, isto de pensar que não estou apaixonada por ti. É tudo uma questão de perspectiva, já todos sabemos. A minha deve estar do avesso, não achas? Podes apanhar-me no próximo parágrafo, eu deixo. Tu falas, eu posso simplesmente ficar a ouvir-te pela noite dentro nessa voz tão doce.

(sim, a música tinha de ser esta.)

1 comentário:

D. disse...

"Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. "O amar os outros" é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.

E nasci para escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.

Quanto aos meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o vôo necessário, e eu ficarei sozinha: É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.

Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.

Ao passo que amar eu posso até à hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera."



- Clarice Lispector, Aprendendo a Viver


Sem palavras. :)